Sunday, February 26, 2006

Bloco do Eu Sozinho


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Originally uploaded by afonsukhoi.
Sob uma impiedosa chuva de confetes e serpentinas, vi um pirata perseguir avidamente uma bailarina. Como não tinha perna de pau, pôde avançar sem grandes dificuldades no meio da multidão ensandecida de foliões. Para apurar a visão, ergueu o tapa-olho. O papagaio, naturalmente sem vida, estava sumido desde o domingo. A bailarina, já sem o coque peculiar das bailarinas, andava a passos largos, sem olhar para trás, quase correndo.

Eu observava a fuga (ou perseguição) atentamente, a imaginar um sem números de motivos por que a bailarina fugia do pirata. Imaginava e, ao mesmo tempo, sentia um tanto de inveja do pirata. Aquele pirata, com o gênio aventureiro e a obstinação dos corsários franceses de outrora, perseguia uma caravela apinhada de prata americana, sua paixão. Eu apenas observava, traído por mim mesmo, um mero espectador.

Naqueles instantes, quis ter a mesma vontade hercúlea do pirata. Quis ter coragem para caçar a minha diaba. Ela, a minha diaba, tinha sumido no sábado, na boca da noite. Depois de uns goles de aguardente, sumiu-se no tumulto de máscaras e cornetas prometendo voltar logo. Não voltou. E eu sabia que não voltaria. Os tragos a levaram para longe, aos braços de algum papangu. Ilusão minha achar que foram os tragos de pinga que a tiraram de mim.

O fato é que fiquei sem a minha diaba, amargando o doce carnaval, com uma bisnaga de lança-perfume na aljava de arqueiro oportunista. Perdi a pena do meu chapéu e uma das minhas botas, mas a festa prosseguiu. Como ainda tinha flechas de sobra, abati algumas vistosas faisãs. Mira certeira no peito. E a diaba, munida de chifres, unhas, volúpia e sortilégios infernais, decerto continuou e continua arrebatando almas incautas. Eternamente.

Menina


2
Originally uploaded by afonsukhoi.
Da parte dela, foi despretensiosa a primeira aparição. Surgiu sozinha, nem me lembro direito onde. Apareceu feito um colibri que não dá a mínima para os ornitólogos de plantão, bebe da flor e sai no seu suave bater de asinhas.

Apareceu, desapareceu, reapareceu, desapareceu... e continua aparecendo, desaparecendo e reaparecendo. Em todos os encontros, é como se eu a visse pela primeira vez, é a mesma intensidade multicor da primeira vez. Sim, são encontros. Mas só eu me encontro com ela. Ela nem me nota. Talvez até note, mas finge que não nota. E a ela é permitido fingir, por ora. No elevado pedestal da sua graça, ela é a estátua intangível, indiferente à admiração dos passantes. Apenas fica parada, sem demonstrar o menor esforço de beleza. É como se o seu monocromático esplendor cinza não carecesse de cores para resplandecer.

Traz na pele, de fato, algo que recende a leoa. Para bem dizer, não é só pela cor, que dança entre a pena do sabiá e o papelão da caixa. A pele é como manta de quietude, garantia absoluta de caça segura. Os cabelos, numa tessitura longitudinal e perfeita, são como redes de pesca que, sem querer, se engancham num pedaço de coral. A voz, ouço-a aos sussurros, nada mais que amostras pequenas de sedução sonora. As orelhas, protegidas contra palavreado barato de galanteador, bailam como dois bombons de chocolate, correndo o risco de serem abocanhados.

Lábios, olhos, dedos, colo, nariz, mãos, queixo, pés, panturrilhas, coxas, pernas inteiras, seios... todo o sistema ideal, enfim, dispensa qualquer descrição falha de um observador ofuscado diante de tamanha luz, fracassado em qualquer tentativa de retratar-lhe o encanto.

Não conheço seu nome, seus medos, suas paixões, suas dores, suas saudades, seus mistérios. Por ora, contento-me apenas em contemplá-la e chamá-la de “menina”.

Friday, February 10, 2006

Uma puta

Não tinha mais vergonha do ofício, do papel social que exercia. Sim, era um ofício. Não deixava de ser. A despeito das ofensas de que era vítima, considerava-se honrada. A honra (na acepção biológica da palavra) fora arrancada há muito, mas a honra moral, abstrata e rara, essa ela tinha. Era puta mais por opção que por necessidade. Para bem dizer, era pelos dois motivos. Notável a sua desenvoltura nas artes do amor. Trabalhava com prazer.

Seguia uma dura rotina. A jornada começava de manhã: colchão duro de cama de casebre, pão velho, leite quase ruim, roupa suja, roupa limpa, penteadeira, maquilagem singela e, finalmente, praça.

Nesse fim quase poético de carreira, lembrava-se das noites distantes... Que era feito daqueles tempos áureos? Das noites em que se deitava com os figurões da cidade: deputados, coronéis, médicos, juízes... até padres. Ganhava mimos de toda sorte, era esposas, várias. Mas todas elas um tanto mais ousadas. Poligamicamente generosas e interesseiras. E agora ia à praça.

Lugar que as meretrizes mais experientes (para não dizer obsoletas) faziam de vitrine – a praça – era, numa análise animalesca, um cemitério sem buraco nem terra. Elas, as putas, eram cadáveres expostos ao vento; os clientes, vermes comedores de carniça. Pobres meretrizes, escória de uma sociedade escoriada, maltratada e subjugada por outras sociedades mais fortes... Pobres meretrizes, vilipendiadas pelos vilipendiados pelos vilipendiados pelos vilipendiados.

E ela era apenas mais uma puta. Uma putinha. Das putas, a puta desgraçada em fim de carreira, de destino traçado pelas traças. Futuro preto cor de noite, da cor do preto sujo e pobre que solicitava seus carinhos baratos. Um preto longe do preto das noites luxuriosas, noites de cabaré lotado, borbulhante. Sob um olhar menos otimista, nem futuro tinha. Era nada menos profundo que um precipício. Era cair sem olhar e morrer.

E, mesmo assim, tomava os bondes rumo à praça. Tinha a praça como lugar sacro, um segundo lar. Mesmo sem tomar banho (quando não tinha água no cortiço), tomava os bondes. Empestava o ambiente coletivo com um perfume barato, um arremedo de fragrância agradável. Despertava nos tipos que com ela partilhavam o bonde os mais diversos sentimentos. Todos eles de desprezo; quando muito, de pena. “Quantos filhos? Doze? Pouco.”, jurava ouvir nos pensamentos das pessoas do bonde. Na verdade, nunca teve filho algum. Estéril. Não sabia se era dom divino ou maldição. De todo modo, nunca teve em filhos motivo de desespero financeiro. Na verdade, nunca quis parir.

Um peão, um bêbedo, um mendigo... Um a um, iam obtendo, sob os cuidados da puta, algo parecido com redenção. Incansável, cansada da guerra sem fim, rodopiava como um pião de criança. Mas puxaram o cordel com tanta força, que ela, mesmo depois de tantos rodopios, parecia estar longe de parar.

Seguia rodando, rodando... Um pião de cores escuras, que, misturadas num rodopio macabro, formavam uma tonalidade de preto, um preto-sepultura. Queria parar, mas não tinha força. O remédio era aguardar até o relógio da vida bater a hora da morte. E aguardou.

Mais tarde, inapelavelmente, soou a badalada fatal: morreu a puta. Demorou um tanto para encontrar a paz telúrica e definitiva. Antes de finalmente se deitar sozinha, foi devorada por outros vermes, os últimos.